12.05.2005

Futurologia

Um artigo de opinião num cenário de futuro (próximo).

Otários
 
Ota 2017. Aterrei pela primeira vez no novíssimo Aeroporto da Ota. A viagem de Paris a bordo do também novíssimo Airbus entregue há dias à Air Varig-Portugal foi muito confortável e fez-me ter saudades da gestão de Fernando Pinto, o brasileiro que deu asas à TAP.
 
É estranho aterrar neste ermo, eu que durante dezenas de anos e centenas de voos me habituei à velha Portela.
 
A saída do avião foi agreste. A nave parou no final da pista (que os especialistas já dizem estar esgotada daqui a dez anos) longe das mangas coloridas que parecem abraçar o edifício de vidro e aço, um dos pouco orgulhos pós-socráticos.
 
A nortada que se fazia sentir não se recomenda nem aos inimigos, com aquele morro de um lado e um rio fazendo lembrar o Trancão do outro. Não fugindo à tradição, o autocarro demorou uma eternidade a chegar. Como sardinha em lata, bem comprimido entre um emigrante da última geração (cheio de «piercings» e turbante) e um antropólogo francês (em busca do último europeu que come de boca aberta, fuma no local de trabalho, bate na mulher e se assume como «cavacus antropopitecus»), sobrevevi.
 
Chegado ao hangar esperei 45 minutos pelas malas. Como não tinha cinco euros trocados para o carrinho tive de transportá-las às costas até ao táxi. Um motorista de cabelo rapado e bigode de três dias dentro de um dos novos Mercedes a hidrogénio desata aos insultos quando lhe digo para seguirmos até Lisboa. «Isto aqui é para trabalhar. Fretes só para o Algarve! Para Lisboa vai no comboio que vem do Entroncamento, pára em todas, e vai na hora. Deixe-me trabalhar!»
 
Indignado, ainda tentei chamar a polícia, mas o aeroporto, como foi construído com dinheiro dos privados (lembram-se do que disse Sócrates em 2005?), também só tem segurança privada e esses só apoiam quem pagou aquele suplemento «premium».
 
Hora e meia depois de aterrar consegui finalmente apanhar comboio para Lisboa. Pensando melhor foi bom ter sido corrido do táxi. A viagem custava 100 euros, metade do preço do voo «low coast» de Paris, e aquela entrada em Lisboa está sempre atascada de carros a qualquer hora, Enquanto não alargarem a Segunda Circular vai ser sempre aquele inferno!
 
Afinal, os tais comboios permanentes entre a Ota e Lisboa são uma ficção. Há comboios de hora a hora e se o voo atrasa podemos ter de esperar quase duas. O comboio devia ser o TGV, mas o projecto passou já por tantos adiamentos que ninguém arrisca uma data para a inauguração. De toda a maneira, a passagem pela Ota está bastante comprometida, pois implica um desvio e com tantos apeadeiros o TGV, se vier a existir, mais vai parecer o velho correio.
 
O aquecimento do comboio não funciona, como sempre, o restaurante só serve cevejas e salgados do dia anterior, as casas de banho estão impróprias para consumo. O que safa a viagem é a televisão que vai dando notícias. Cavaco, que já deixou a presidência, inaugurou hoje a sede da sua fundação. Foi comovente aquele abraço a Mário Soares, que não quis deixar de estar presente apesar da sua evidente debilidade física. Durão Barroso, que ganhou à tangente as presidenciais na segunda volta a Sócrates, está cada vez melhor no seu papel de Presidente da República. Os portugueses esqueceram a sua fuga em 2004 e penalizaram Sócrates por uma governação que tanto queria domar o défice que acabou de vez com qualquer veleidade de a economia portuguesa crescer. Não é por acaso que a Grécia é a nova Irlanda e o sonho de algumas jovens portuguesas é poderem ser actrizes na novela «Morangos Silvestres» da TV checa.
 
Já em Lisboa, passadas três horas de ter aterrado na Ota, percorro agora a Segunda Circular, sempre engarrafada. A Portela começou a ser dividida em talhões para construção. O único avião ali por perto é aquele que, transformado em bar, continua com os seus «show girls» noite dentro. Um sobrevivente.
 
Mais abaixo, na Avenida de Brasil, cruzo a Reinaldo Ferreira, a rua da minha infância, onde os aviões passavam a escassas centenas de metros da janela do meu quarto. Cresci com aquele barulho dia e noite. Ficava especado à espera que passasse um desses pássaros e me levasse na minha imaginação.
 
A Portela era um fascínio lisboeta. Dava uma dimensão cosmopolita ao país, perto do mundo.
 
Agora temos um elefante branco, longe, caro, não competitivo, desmotivador do turismo em Lisboa. Mais um buraco para pagarmos, depois das Scut , do TGV, da saúde, da educação. Uma lista impagável num país de otários.
 
 
Luiz Carvalho
 
http://online.expresso.clix.pt/1pagina/artigo.asp?id=24755576

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